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Evidências evolutivas: o passado impresso no corpo I (órgãos vestigiais)
Por: Pablo Aaron dos Santos
A evolução é fascinante, tanto que tem sido assunto recorrente nas minhas postagens. Não poderia ser diferente para alguém que gosta de tentar entender a natureza.
Vejo a biologia exatamente como Dobzhansky, para quem, sem a evolução, não passaria de um apanhado de fatos interessantes, mas sem conexão.
Um dos pilares das ciências naturais, e praticamente unanimidade entre os cientistas, a evolução não cansa de mostrar-se para quem tem olhos atentos. Em contrapartida, é impressionante o número de opositores que encontramos entre o público em geral, em sua maioria por motivos religiosos, ou simplesmente por desconhecimento puro e simples da disciplina.
Este artigo é o primeiro de três, em que focaremos principalmente nas evidências morfológicas encontradas em diferentes grupos de seres vivos.
Os mecanismos evolutivos bem podem ser descritos, grosso modo, como “gambiarras” da natureza. Os leigos costumam imaginar a evolução como uma busca da perfeição, e que o ser humano seria seu design perfeito. Alguns chegam a imaginar que se a evolução é verdade, os outros animais deveriam evoluir e tornar-se semelhantes a humanos. Uma tremenda bobagem! Todos os seres atuais estão no mesmo estágio de evolução, o que acontece é que alguns preservam mais características primitivas (plesiomórficas). Não existe “mais evoluído” entre seres ainda viventes.
Imagino que a culpa de tal confusão esteja no próprio nome que dá a impressão de uma sequência de melhorias.
O dicionário Aurélio resume a evolução da seguinte forma:
Biol. Segundo o darwinismo, processo que, ao longo de sucessivas gerações, leva à diferenciação das espécies, determinado por mutações genéticas e por seleção natural.
É uma definição simples, mas perfeita. Em nenhum momento cita melhoria.
A verdade é que o ambiente natural muda muito, e às vezes muito rápido. Nós não podemos prever essas mudanças, logo não existe um planejamento para atingir perfeição no futuro. Uma adaptação muito boa para um ambiente atual pode tornar-se um estorvo caso o ambiente mude, forçando um rearranjo dos seres da espécie, já que a alternativa é a extinção. Por esse motivo, várias espécies possuem estruturas pouco usadas, ou então mal desenhadas.
As evidências morfológicas serão separadas em órgãos vestigiais, comentados neste artigo, embriologia comparada, e o que eu definirei como “erros de projeto” ou “design desinteligente”, que ficarão para os próximos dois.
►Órgãos Vestigiais
Muitos criacionistas pensam ter encontrado a "pedra de roseta" ao citar largamente em seus blogs que vários órgãos vestigiais na verdade possuem função. Não existe problema algum nisso, pois muitos deles realmente são funcionais. A melhor definição para esses órgãos seria estruturas que ou não possuem função, ou apresentam-na bastante reduzida, possibilitando a sobrevivência, na maioria dos casos, sem nenhum prejuízo para o organismo que não o tenha.
Em todos os casos, esses órgãos eram funcionais nos ancestrais daquele ser, e por adaptação a uma nova forma de vida ou seleção sexual, tornaram-se reduzidos, perdendo em alguns casos totalmente a função. Outra possibilidade é o órgão passar a ser utilizado de uma forma diferente da original, daí eu chamar a evolução de gambiarra lá em cima.
1- Apêndice
A lista desse tipo de órgão é longa, e começaremos com o mais clássico, o apêndice. Trata-se de uma estrutura vermiforme, cuja principal utilidade é reduzir a população mundial causando apendicite. Além desta, ainda produz algumas linhagens de células de defesa do corpo, mas em uma quantidade tão reduzida que sua eliminação não causa baixa de imunidade. Mas como podemos afirmar que se trata de um órgão vestigial? Como podemos dizer se um órgão deveria trabalhar mais ou menos? Comparando com outros animais.
Os herbívoros apresentam o apêndice bastante desenvolvido, como uma bolsa para armazenar bactérias que auxiliam na digestão da celulose, sendo um bom exemplo o koala. No homem, a partir do momento que começou a utilizar carne na alimentação, o custo de manter essa estrutura desenvolvida passou a ser mais caro do ponto de vista energético do que o benefício que ela trazia digerindo vegetais. A seleção acabou favorecendo os indivíduos que apresentavam apêndice atrofiado.
Apêndice vermiforme: muito prejuízo para pouca função.
2- Prega semilunar
Outra estrutura muito conhecida é a prega semilunar. Trata-se de uma dobra pequena de pele próxima do olho. É um vestígio da membrana nictitante que protege o olho, como se fosse uma terceira pálpebra, e é bastante desenvolvida em aves, peixes e répteis, mas sem função em humanos. Em alguns casos, como nas águias, essa membrana pode ser transparente, permitindo que o animal enxergue de “olhos fechados”. Em espécies aquáticas, possibilita boa visão mesmo durante o mergulho.
Prega semilunar e membrana nictitante. Mesma estrutura com roupagem diferente.
3- Cóccix e vértebras extras
O cóccix é a parte final da coluna vertebral, e serve para inserção de alguns músculos (9 deles). Essa função é pequena, pois hipoteticamente, esses músculos poderiam estar ligados a qualquer outro osso. Em outros animais, o cóccix dá origem à cauda, e em algumas anomalias genéticas, pessoas podem nascer com essa estrutura aumentada, como na gravura a seguir.
As vértebras soldadas do cóccix e anomalia genética que produziu uma cauda em um bebê.
Além do cóccix, 8% dos humanos possuem um par extra de costelas (13 no total) como nos gorilas e chimpanzés, evidenciando uma ancestralidade em comum. Existem ainda pessoas que nascem com um conjunto de costelas no pescoço (1% da população), como nos répteis, o que causa problemas nervosos e arteriais.
4- Músculo eretor do pelo
Esse talvez seja o meu preferido. É um pequeno músculo encontrado na base do pelo e é responsável pelo arrepio. Em outros animais pode auxiliar na defesa e na manutenção da temperatura do corpo, mas os humanos possuem poucos pelos para beneficiar-se da mesma forma.
Os animais que possuem pelagem longa, como canídeos e ursos podem levantar os pelos, criando uma camada de ar em volta do corpo. Como o ar é isolante térmico, protege-o do frio. Já os felinos ficam arrepiados quando são ameaçados. Essa reação faz com que o outro o veja de tamanho maior, e talvez recue o ataque.
Nós ainda nos arrepiamos quando tomamos sustos ou sentimos frio pelos mesmos motivos, mas não só o músculo é vestigial, como o comportamento que ele cria também é, não trazendo nenhum benefício.
O comportamento vestigial do arrepio e a pele em corte evidenciando o músculo eretor do pelo.
5- Dente siso
Os sisos são os terceiros molares, dentes que surgem tardiamente e que perderam boa parte da sua função após o homem alterar sua dieta, passando a ser onívoro. Algumas pessoas não possuem mais esses dentes, e alguns indivíduos nem apresentam mais o gene responsável pela sua produção.
6- Músculos não funcionais
Existe uma quantidade enorme de músculos sem utilidade no ser humano. Podemos citar a musculatura que possibilita mover a orelha, importante em animais como o cavalo, cachorros e gatos, que podem com isso espantar moscas e saber de que direção vem o som, mas sem função em humanos. Em alguns casos, animais que caçam em bando utilizam os movimentos de orelha na comunicação, como a leoa, que apresenta uma mancha preta para auxiliar na visualização, ou os lobos que formam matilhas.
Mancha na orelha de leoa; os movimentos da orelha servem para comunicação no momento da caça.
Existe ainda os músculos plantar (já inexistente em 9% da população), que auxiliava os nossos ancestrais a pegar objetos com o pé, e o palmar (inexistente em 11% dos humanos), que ajudava a agarrar e balançar em árvores. Estes músculos são uma herança da nossa ancestralidade símia.
Algumas pessoas apresentam também um grupo de músculos que possibilita mover o nariz, eu inclusive. A função é importante em animais com olfato apurado, pois auxilia no farejar de presas e em distinguir a direção do cheiro. O olfato humano é tão ruim que a função dessa musculatura não se aplica.
Lobo farejando. O movimento do focinho auxilia na identificação da direção do cheiro.
Outro conjunto de músculos interessante são os subclávios. Trata-se de uma musculatura importante para animais que andam de quatro, mas também sem função em humanos, tanto que o número deles varia de pessoa para pessoa sem prejuízo algum. Algumas pessoas têm um, outras têm dois, e algumas não têm nenhum.
7- Órgão vomeronasal ou de Jacobson
Trata-se de um buraco pequeno em cada lado do septo da cavidade nasal que liga a quimiorreceptores não funcionais. A função original deste órgão era captar feromônios. Enquanto pensava-se que esta estrutura não existia em primatas superiores, dados atuais demonstram sua existência em humanos.
8- Ponto de Darwin
É uma prega de pele localizada na orelha em algumas pessoas e que poderia ser o remanescente de uma formação maior que possibilitaria amplificar o som, assim como fazemos com as mãos quando queremos ouvir um ruído distante.
Ponto de Darwin, presente em alguns humanos, e desenvolvido no macaco.
►Órgãos vestigiais em outros animais
1- Asas vestigiais
As asas vestigiais são corriqueiras em espécies que perderam a capacidade de voar durante a evolução. A redução é comum no grupo das ratitas, que engloba as emas e avestruzes. Nesses grupos as asas auxiliam no equilíbrio durante a corrida, daí não terem sido totalmente eliminadas, apesar de que não faz muito sentido criá-las para equilíbrio e não para o voo. Seria claramente um “erro de projeto”, evidenciando que as asas foram readaptadas para um novo estilo de vida que envolve correr. Em alguns casos, como no kiwi, ave endêmica da Nova Zelândia, elas não estão mais presentes.
O Kiwi (Apteryx sp.)
Um caso interessante de asas vestigiais é o do kakapo, espécie de papagaio noturno semelhante à coruja, encontrado apenas na Nova Zelândia. O texto abaixo foi retirado do livro “O maior espetáculo da Terra” de Dawkins:
“Nas palavras do imortal Douglas Adams em 'Last chance to see', o kakapo
É uma ave gordíssima. Um adulto de bom tamanho pesa cerca de dois a três quilos e suas asas só servem para que ele possa sacudir-se um pouquinho se pensar que vai tropeçar em algo. Mas voar está completamente fora de questão. Infelizmente, porém, parece que não só o kakapo esqueceu como se voa, mas também não se lembra de que esqueceu como se voa. Às vezes um kakapo dá a impressão de estar seriamente preocupado, sobe correndo numa árvore, salta lá de cima, voa como um tijolo e se estatela feito uma trouxa no chão.”
O kakapo (Strigops habroptilus).
2- Patas vestigiais
As patas vestigiais são um bom exemplo de estruturas antigas preservadas nos seres atuais, pois temos um vasto registro arqueológico sobre isto. Os animais podem perder suas patas por vários motivos, dentre eles, readaptação a um ambiente aquático (caso dos cetáceos e talvez as serpentes) ou mudança para hábitos fossoriais (serpentes).
No grupo dos cetáceos (baleias e golfinhos), os animais perderam apenas seus membros posteriores, e tiveram uma adaptação dos anteriores na forma de nadadeiras. A cintura pélvica e os ossos que formariam os membros posteriores ainda podem ser encontrados nesses animais, mas de forma bastante reduzida. Esses ossos ainda apresentam função, auxiliando na cópula, mas não atuam mais na locomoção, sendo outro exemplo de gambiarra. “Reaproveite o que já existe, ou então elimine”.
Membros posteriores de baleia, sem função na locomoção.
Algum tempo atrás um golfinho mutante foi encontrado com nadadeiras traseiras desenvolvidas, mostrando que algumas mutações podem ser revertidas. No caso das cobras, também é possível encontrar algumas delas com pequenas patas, como numa volta ao passado.
Golfinho mutante com nadadeiras traseiras; e cobra com patas.
A sequência evolutiva dos cetáceos atualmente é bem estudada, com vários de seus ancestrais conhecidos, como podemos ver a seguir:
Como podemos ver, existem várias evidências que indicam que a evolução está acontecendo, mas as principais delas estão impressas no seu corpo. Você é produto da evolução. Nós não somos ferramentas bem trabalhadas e moldadas no barro por mãos de um artista. Estamos longe da perfeição.
A realidade pode parecer dura, mas é bem o contrário. A imperfeição não suplanta a nossa complexidade. Somos máquinas fantásticas, produzidas através da disputa pela vida em um planetinha na periferia da galáxia, sem muita importância, aos cuidados de um “relojoeiro cego” e trilhando “a escalada do monte improvável”.
No próximo artigo discutiremos alguns “erros de projeto” no ser humano e em outros animais.
Artigo originalmente publicado por mim em Detectando a Realidade.
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